Ailton Graça conta que, às seis da manhã, a sala de maquiagem da produção já era uma farra só. “Todo mundo batucando e cantando samba”, recorda. “E, no final do dia, ao término da filmagem, aí é que o samba comia solto mesmo. Era uma celebração para ele, na construção do trabalho. Como se ele estivesse presente.” A sinergia era tamanha que nasceu ali o grupo Mumu Sambis, que tem planos de, quem sabe, gravar e fazer shows. E o “ele” a que o ator se refere é, obviamente, o homenageado da obra: Mussum, o carismático e querido personagem televisivo, famoso como ator e humorista de programas e filmes da trupe Os Trapalhões.
Mussum já foi celebrado anteriormente em documentário biográfico (Mussum, um Filme do Cacildis, de Susanna Lira, 2019). Criador de gags e tiradas atemporais, Mussum, ou Antônio Carlos Bernardes Gomes (1941-1994), foi também músico de sucesso, cantor e fundador dos fantásticos Originais do Samba – para muitos, o maior grupo de samba que já houve na MPB.
“Estou esperando há sete anos para fazer esse filme, e acabei contemplado com esse ‘pretagonismo’. Agradeço aos orixás, porque ele veio no momento certo. Tivemos um elenco maravilhoso, foi uma entrega intensa como nunca vivi antes”, comemora o ator. “Intuo e desejo que nossa história contribua para a volta da troca de afeto, do abraço. O Mussum era a antítese do momento pelo qual passa o País hoje. Ele era alegre mesmo com todas as suas tristezas e demônios.”
À frente do projeto está Silvio Guindane, cineasta de 38 anos que, aos 13, arrancou gargalhadas do público dançando break no auge da tensão de Como Nascem os Anjos (1996), de Murilo Salles. Como ator, Guindane construiu sólida trajetória, na TV, cinema e no teatro. Mussum, o Filmis é sua segunda incursão por trás das câmeras e deve estrear em 2023.
“Um dia, um amigo me intimou: ‘Você escreve, dirige, atua, adapta, faz um monte de coisa em TV, séries, teatro. Até quando vai fugir de dirigir cinema?’.” Em verdade, o batismo veio com o ainda inédito Casamento à Distância, para a Netflix. Em Mussum…, ele adapta o livro de Juliano Barreto, Mussum Forévis. Desenvolvido em três épocas (anos 1940, 70 e 80/90), com perto de cem pessoas no elenco, o longa já foi concluído no Rio e tem produção conjunta da Camisa Listrada, da Panorama Filmes, Globo Filmes e Globoplay – com roteiro de Paulo Cursino.
Originalmente, Mussum… (apelido, aliás, dado por Grande Otelo) tinha como diretor o produtor Roberto Santucci, da Panorama Filmes. “Ele me ligou dizendo que era para eu dirigir, que tinha de ser alguém com o olhar de dentro. Ele preferia ser apenas o produtor, teve essa generosidade”, revela Guindane. Com Ailton Graça já escalado como protagonista, Guindane finalizou o casting com nomes importantes como as atrizes Neusa Borges e Cacá Protásio (que vivem a mãe do humorista em diferentes fases), Gero Camilo (Renato Aragão/Didi) e Yuri Marçal como o jovem Antônio Carlos pré-fama. Os primeiros stills de estúdio revelaram um Ailton Graça de incrível semelhança com o homenageado. Guindane: “Ensaiamos muito até ele chegar ao Mussum que habitava nele. A partir daí, os trejeitos, as falas, tudo foi fluindo muito espontaneamente”.
Por sua vez, o ator relembra o dia em que os filhos do humorista entraram no estúdio e tomaram um susto ao vê-lo caracterizado como seu pai. E diz que ainda não tem a noção precisa sobre quais camadas do Mussum exatamente entregou ao filme, dada a complexidade do personagem. “Tivemos um texto maravilhoso, que tenta dar conta do homem anterior ao Mussum. Minha curiosidade era sobre o cara que nasceu em favela, virou militar e que, antes de virar o super bem-sucedido Mussum, era o Carlinhos do Reco-Reco, sambista apaixonado pela Mangueira a ponto de virar diretor da Ala das Baianas. Muita gente não sabe que, antes dos Trapalhões, ele começou na Escolinha do Professor Raimundo, do Chico Anísio. Nem do seu compromisso com as causas negras. Mussum achava que todos no morro tinham de saber ler e escrever, a ponto de criar com a Alcione o projeto Mangueira do Amanhã. Ele queria ajudar a formar jovens cidadãos.”
Como quase tudo que envolve a memória do ator/humorista, o título bem-humorado do filme alude a seus impagáveis trocadilhos, assinatura até hoje lembrada e festejada – a cerveja especial criada por Sandro Gomes em homenagem ao pai não por acaso chama-se “Cacildis”. “Para todo mundo que eu falava que ia filmar o Mussum, a primeira reação era de risos”, conta Guindane.
“É uma reação natural. Mas o que me atraiu no projeto foi poder revelar as diferentes texturas da vida de um cara complexo. Um cara que nasceu preto e pobre, mas que teve a coragem de não deixar que limitassem seus sonhos. Que cresceu numa favela com pai ausente, estudou em colégio interno público, alfabetizou a própria mãe e que, quando serviu na Aeronáutica, pulava o muro do quartel pra perseguir aquilo que tanto amava: o samba e a Mangueira.”